quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Julgamento repetitivo no tema da fraude

O mecanismo de funcionamento dos julgamentos ditos repetitivos (art. 1.036 do CPC) permite incorreções, na medida em que exista descompasso entre a decisão proferida firmando a tese e os casos que restaram suspensos, aguardando a definição da tese para posteriormente ser aplicada ao processo suspenso.
Tal se passou em processo decidido pela 24ª Câmara de Direito Privado do TJSP, que havia reconhecido fraude em transação sobre bem que veio a ser penhorado em execução. O processo ficou suspenso e, depois de firmada a tese, voltou para novo julgamento, pois o antes decidido contrariava o quanto estabelecido de modo vinculante. 
No novo julgamento (Processo n. 9291550-61.2008.8.26.0000/50003), modificou-se o antes decidido e se entendeu não existir a fraude, o que ensejou recurso especial, obstado em razão de se entender que o acórdão agora proferido estava conforme a tese firmada pelo STJ. Para chegar a esse entendimento valeu-se a decisão da regra do art. 615-A do CPC-73 e, de outro lado, desprezou a disposição do art. 1º da Lei n. 7.433/85, que estava em vigor na época e que impunha a apresentação e o traslado na escritura das certidões imobiliárias e pessoais do vendedor de imóvel.
Os temas versados no recurso indeferido evidenciam que o caso nada tem com a tese firmada, pois a realidade daquele momento se fazia a partir de outra legislação.
O processo de execução em que a fraude teria ocorrido é de 1995; a compra e venda que seria fraudulenta realizou-se em 1997, onze anos antes da definição da tese, fato que se deu somente em 2009, afetando-se, assim, se aplicada ao caso, um negócio 22 anos depois de sua realização.
No tempo em que teve início aquela execução e ainda no tempo em que teve lugar a compra e venda vista como comprometida, vigorava a Lei n. 7.443/85 – e seu art. 1º, logicamente, e não existia o art. 615-A do Código de Processo Civil. O primeiro dispositivo é um dos melhores pilares da tese do recorrente, pois o comprador do imóvel dispensou as certidões; o segundo, é o mais forte fundamento do acórdão e também da tese firmada no julgamento repetitivo. Essas circunstâncias demonstraram que o caso de agora é outro, pois o que vigorava então não mais vigora; e o que não existia passou a existir. Desse modo, a repetição da tese não poderia no feito pretérito ter ecoado, justificando que se enfrente a admissibilidade do especial com base na situação vigente ao tempo do negócio e da execução.
O art. 1º da Lei n. 7.433/85 vigorava na época da venda do imóvel e do início da execução e exigia, para a lavratura de escritura pública de compra e venda de imóvel, que fosse consignada, na escritura, a apresentação das certidões dos cartórios distribuidores judiciais relativas ao proprietário do imóvel, certidões estas que deveriam ficar arquivadas junto ao Cartório.
Providenciar estas certidões era obrigação do comprador, denotando a falta das mesmas desleixo do adquirente, de modo a não lhe permitir ostentar sua boa-fé, pois descumpriu a lei, tornando-se suscetível de ser ludibriado, mas por desleixo seu e sequer por malícia do vendedor, isso se mancomunados não estivessem.
De outro lado, é certo que valorizou o STJ no julgamento repetitivo o art. 615-A do CPC-73, dizendo que “conforme previsto no § 3º do art. 615-A do CPC, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após a averbação referida no dispositivo”.
O acórdão cujo especial contra ele foi indeferido imputa a culpa ao recorrente por não haver realizado a tal averbação da distribuição da ação de que cuida o art. 615-A.  Ocorre, porém, que esta regra veio à nossa legislação somente em 2006 pela Lei n. 11.382, portanto dez anos depois do fato, de forma que não poderia mesmo ter sido usada. Portanto, o precedente firmado no julgado repetitivo não poderia servir para o processo com fatos de então, pois ele coloca uma exigência que não poderia ser cumprida pelos credores antes da edição da lei que passou a ensejar essa salutar averbação. 
Esse caso em particular deixa claro o cuidado que se deve ter na aplicação de precedente. Ele não pode servir para situações que não são contemporâneas a ele, de modo que antes de utilizá-lo há de se aferir se há identidade de fundamentos jurídicos entre o caso decidido e o precedente, sem o que ele não pode ser utilizado, pois o precedente só existe para situações fáticas e jurídicas iguais àquela com que o mesmo trabalhou. 

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Responsabilidade solidária dos pais


É sabida a regra de que não há execução sem título. De outro lado, é também assente que a execução há de ser dirigida contra quem consta no título como devedor. Este, conforme o art. 789 do Código de Processo Civil, responde pelas obrigações assumidas com todos os seus bens presentes e futuros.
A partir dessas premissas, há quem resista à ideia de que alguém, que não firmou o título e, pois, não assumiu a obrigação de pagar a dívida, possa ser demandado pelo credor por dívida não expressamente sua. Tanto se passa nos contratos de prestação de serviços educacionais, nos quais o estabelecimento escolar contenta-se com a assinatura de apenas um dos pais, que assume, assim, a condição de responsável financeiro. Essa circunstância, no entanto, não exclui a responsabilidade do outro genitor, o que não assinou o contrato, independente do regime de bens do matrimônio.
O art. 1.643 do Código Civil autoriza qualquer dos cônjuges a adquirir “coisas necessárias à economia doméstica”; enquanto o art. 1.644 estabelece a solidariedade de ambos os cônjuges pelo pagamento das referidas aquisições. As dívidas referentes à educação dos filhos enquadram-se na classe das coisas da economia doméstica, tendo já o STJ assim firmado, prevendo literalmente  que “estão abrangidos na locução ‘economia doméstica’ as obrigações assumidas para a administração do lar e, pois, à satisfação das necessidades comuns/familiares” (REsp 1.472.316, rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, julgamento em 5.12.2017). No mesmo sentido, o inciso IV, do art. 790, do Código de Processo Civil estende qualquer sorte de obrigação ao cônjuge e companheiro “nos casos em que seus bens próprios ou de sua meação respondem pela dívida”, sendo a dívida educacionais e, antes, aquela referente à “economia doméstica” uma das hipóteses de extensão dessa responsabilidade.
O TJSP reconheceu também essa responsabilidade como sendo de ambos os genitores. Assim, no agravo de instrumento n. 2230675-64.2019.8.26.0000, relator Des. GILBERTO DOS SANTOS, julgado em 7 de novembro de 2019, restou decidido ser “admissível o reconhecimento da responsabilidade solidária do outro genitor, detentor de poder familiar, por se cuidar de dívida referente à educação dos filhos, contraída em proveito da entidade familiar”.  Confere-se, desse modo, sentido à obrigação maior de ambos os pais de educar os filhos.