domingo, 30 de agosto de 2020

Juros exorbitantes

Houve tempo em que um grande negócio era dever em juízo: os juros legais eram de 6% ao ano (0,5% ao mês) e, ainda, a correção monetária, em que pese incidisse nas dívidas (isso a partir de 1981), sua aplicação era mensal. As contas eram atualizadas com os juros e a correção no início de cada mês, quando, então, o levantamento dos depósitos judiciais tinha um movimento extraordinário, provocando enormes e demoradas filas nos bancos depositários. A dívida, pois, diminuía constantemente, pois os juros de mercado e as correções diárias eram comuns nos negócios. 

Alterações da lei civil e processual afetaram essa situação. No processo foi criada a multa pelo não pagamento do débito reconhecido judicialmente no prazo de quinze dias, majorando, primeiramente, em 10% seu montante, acrescentando-se, mais adiante, também a incidência de honorários em igual percentual, de modo que o não cumprimento da sentença condenatória no prazo de quinze dias gera um acréscimo de 20%. De outro lado, na lei civil, a partir de 2003, os juros legais passaram a ser “segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”, o que, segundo o § 1º, do art. 161, do Código Tributário Nacional seria de 1% ao mês. Essas modificações legislativas se deram ao tempo em que ainda havia inflação significativa, embora nada comparável as da década de 80 e início da de 90, de modo que, além de induzir ao cumprimento da obrigação, também faziam justiça.

Ocorre, porém, que os juros oficiais (taxa SELIC fixada pelo Banco Central) foram sendo paulatinamente reduzidos, em grande parte devido a igual redução dos índices inflacionários. Em que pese essa redução não ter repercutido nos créditos das instituições financeiras, é certo que a Justiça sobre o assunto deveria debruçar-se, até para que o crédito apurado em juízo não se transformasse, de longe, na melhor aplicação financeira que se pode realizar. 

Nesse sentido, em primeiro lugar, existem precedentes do próprio Judiciário que estão sendo desconsiderados, como bem colocam BRUNO TOSTES CORREA e outros: “Há quem diga que a taxa aplicável para a mora do pagamento de tributos devidos à Fazenda Nacional seria a Selic. Tal entendimento parece ser pacífico no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No Agravo Interno no Recurso Especial n. 1543150/DF, julgado em 07/10/2019, a Quarta Turma do STJ decidiu que ‘a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 do Código Civil de 2002 é a Selic.’ Há, inclusive, acórdão do STJ lavrado na sistemática dos recursos repetitivos que adota tal entendimento (veja-se, por exemplo, o Recurso Especial n. 1102552/CE)” (“A nova taxa Selic e os juros legais”, no CONJUR, de 09 de dezembro de 2019). Se há essas judiciosas colocações, por que se persiste falando em 1% e ponto final?

Atente-se, de outro lado, que os juros são considerados matéria de ordem pública, embora, diminuindo a eficácia desta asserção, se lhes contrapõem outros princípios de natureza processual, como já firmou o STJ: “É importante ressaltar ainda que não se desconhece a natureza de questão de  ordem  pública dos juros legais, conforme entendimento pacífico  desta Corte. Todavia, tal natureza não é capaz de se impor sobre outras questões da mesma ordem, tal como a coisa julgada e a preclusão” (REsp 1783281 / PE, Rel. Min. OG FERNANDES).

Entretanto, quando do advento do Código Civil atual, o STJ o aplicou, de imediato, às relações jurídicas em curso, firmando: "A jurisprudência desta Corte Superior assinala que a alteração da taxa de juros legais operada pelo art. 406 do CC/02 colhe as relações jurídicas em curso, de modo que, mesmo quando houver sentença condenatória transitada em julgado estipulando a aplicação de juros de mora no percentual assinalado pelo art. 1.062 do CC/16, será possível sua modificação, a partir de 2003, para adequação ao disposto no art. 406 do CC/02". (AgInt no REsp 1471585 / RJ, rel. Min. MOURA RIBEIRO). Mais ainda, admitiu aquela mesma Corte o enfrentamento da questão da fase de liquidação de sentença, vendo a “possibilidade de revisão do capítulo da taxa de juros de mora fixada pela sentença, em fase de liquidação ou cumprimento de sentença, em face da alteração operada pela lei nova (Código Civil de 2002)” (REsp 1367932 / RS, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO).

Um precedente aqui e outro acolá podem fazer com que o tema seja revisto, ainda que depois de concretizadas muitas injustiças, pois o trato dos juros nos negócios é tema sujeito a mutações por fatores vários, aos quais a Justiça não pode dar de ombros, notadamente quando reconhece ser efetivamente o instituto de ordem pública, de modo a se tornar frágil mesmo diante da previsão legal.